Dia da Consciência Negra: 10 (ou o fim do PI) musicistas fundamentais (ou esquecidos) da música brasileira

Por Rui Santos

Reconhecido por sua imensa riqueza musical, contando com a milionária contribuição da diversidade regional, da influência da cultura afro e da nossa alegria e molejo, o Brasil é um celeiro de talentos negros, principalmente quando se trata de ritmos e letras.

Essa não é uma alegria alienada, por mais que aparente. Uma despretensiosa canção de amor pode conter nas entrelinhas uma poderosa mensagem de protesto. São várias as características: o protesto pode ser explícito, velado, sublimado ou lírico. Mas não deixa de ser um protesto.

Protesto pela condição social. Pelas agruras sofridas durante a história brasileira. Pelo simples fato de ter nascido mulher, tornando-se a Geni nacional por supostamente ter agravado o alcoolismo do maior ídolo do futebol brasileiro. Pelo fato de ser gay ou trans. Pelo fato de ter sido envolvido em um caso de suposta delação a ponto de não conseguir mais trabalhar na área musical e ter a sua promissora carreira enterrada e renegada até a sua triste morte. Pelo fato de ser uma pessoa extremamente bondosa e ter tido a graça de morrer, em paz, dentro de uma igreja, em um domingo de Carnaval. Pelo fato…
Vamos aos nossos musicistas.

Evidentemente que 10 nomes é muito pouco e personalidades igualmente importantes ficarão para outra ocasião. Não precisam protestar, nem me cancelar.

Nos comentários, fica livre a sugestão de outros artistas. É um aprendizado coletivo.
(não está em ordem cronológica tampouco alfabética)

Pixinguinha
Alfredo da Rocha Vianna Filho (1897-1973), mais conhecido como Pixinguinha, nasceu em uma família de músicos, no Rio de Janeiro e entrou para história ao ser um dos pioneiros do samba, e é um dos maiores representantes do choro brasileiro.

Participou do grupo Os Oito Batutas, que popularizou o ritmo por outros países, e de composições de canções que marcaram a música brasileira, como Carinhoso, Lamentos e Rosa. Pixinguinha morreu em um domingo de Carnaval, em 1973, durante o batizado do filho de um amigo, em Ipanema. Até hoje, no horário de sua morte, a Banda de Ipanema executa Carinhoso, em sua homenagem.

Recentemente, foi lançada uma cinebiografia sobre o mestre, com Seu Jorge e Taís Araújo, que você pode alugar ou comprar aqui:  
Lamento, com João da Baiana e Baden Powell

Nilo Chagas
É triste quando se faz uma pesquisa de um cantor que você nem sabe o nome, mas tem apenas a referência de que formava o grandioso Trio de Ouro ao lado de Dalva de Oliveira (1917-1972) e Herivelto Martins (1912-1992). Nos meados dos anos 30 e em toda década de 40, o trio reinou nas paradas, lançando um sucesso atrás do outro.

Esse é o caso de Nilo Chagas (1917-1973). O ostracismo pode ser constatado ao não se encontrar nenhum vídeo de Nilo cantando sozinho. Ou ele acompanha o Trio ou são vídeos de outros cantores que interpretam alguma de suas composições.

O esquecimento também é notório quando se compara a sua lacônica biografia no wikipedia a de seus famosos parceiros do Trio, extensas e bastante detalhadas.

Elizeth Cardoso
Conhecida por inúmeros epítetos, como A Enluarada, A Divina, A Mulata Maior, Elizeth Cardoso (1920 – 1990) começou sua carreira aos 17 anos, descoberta por Jacob do Bandolim (1918-1969) “com muito orgulho”, segundo ele mesmo declarou.

A voz de Elizeth era algo claro, elegante, imponente, assim como a sua figura. Um clássico a serviço do samba, da MPB, da orquestra. Não obstante ter gravado talvez os mais importantes compositores do século, pode-se considerar a sua obra-prima o disco “Chega de Saudade”, de 1958, com João Gilberto (1931-2019) e Tom Jobim (1927-1994)

Lupicinio Rodrigues

Na minha modesta opinião, é inconcebível que Lupicínio Rodrigues (1914 – 1974), ou Lupi, para os íntimos, fique fora de qualquer lista sobre música brasileira. Nascido em Porto Alegre, na região Sul do Brasil, que infelizmente vem exibindo com menos vergonha o seu lado racista, Lupi foi bedel na faculdade de Direito de Porto Alegre e cunhou praticamente a expressão dor-de-cotovelo. E foi um dos inspiradores da Tropicália.

A coragem de expor sua fragilidade, de expurgar o seu ódio e sua violência nas letras de suas canções o faz, para mim, um artista único. Que, talvez hoje, seria incompreendido pela turma do cancelamento, que só quer lacrar.

Lupi há de concordar comigo, mas queria indicar dois vídeos. Um com ele e outro com uma importante conterrânea:

Dolores Duran

O coração não aguentou tanto talento. Tem-se a dúvida se Dolores Duran (1930 -1959) partiu muito cedo ou seus 29 anos de vida foram o suficiente para transformar e influenciar a música brasileira. Diversos cantores, como Nana Caymmi e Leny Andrade reconhecem a enorme influência da compositora em suas obras.

Tom Jobim conta que estava apresentando a melodia de uma música que estava compondo com Vinicius de Moraes (1913-1980) a um grupo de amigos. Entre eles, Dolores Duran. A certa altura, ela se afasta do grupo, se senta numa mesa e rabisca algo em uma folha de papel com um lápis de pintar os olhos.
Em 2 minutos, ela retorna e diz: “toca de novo Tom. Duvido que Vinícius faça melhor”. Nascia a clássica Por Causa de Você. Vinicius, como um cavalheiro, disse a Tom que a letra sugerida por Dolores estava excelente.

Por fim, Tom ainda contou que alguns jornalistas da imprensa criticaram a música… “Imagina, flor sorrir… cantar”.

Vamos à música!

A TV Globo produziu um especial sobre Dolores Duran para a série, disponível em
“Especial Por toda minha Vida”

Wilson Simonal
Dizem que ele hipnotizava a plateia… tinha um carisma tão gigantesco que deixava o público cantando e atravessa a rua da boate para o bar em frente para tomar uma cerveja e voltava para concluir a música. Documentários, pessoas que viram esta fase diziam que Wilson Simonal (1938-2001) era um fenômeno de popularidade.

Até que uma história que envolvia o músico em um esquema, que é mal explicada até hoje, foi o responsável por sua ruína. Ninguém queria mais trabalhar com ele, o que agravou ainda mais o seu alcoolismo. Morreu em 2001, mendigando por redações e programas de televisão por uma chance de recomeçar.

E tem também, o  documentário Wilson Simonal: Ninguém sabe o que vivi, de Claudio Manoel, que conta essa história:

Liniker
A cantora trans Liniker (1995) apareceu como um assombro pra mim. O clipe da música Zero, feito quase de maneira artesanal apresenta uma negra, com um conjunto, com uma potência vocal e de vida, que me deu um alento a respeito do futuro da música brasileira.

Desde então, Liniker vem galgando passo a passo uma trajetória que ainda lhe trará muito sucesso. Por enquanto, ela só foi a primeira cantora trans a conquistar o Emmy. Mas muito mais troféus chegarão à estante deste talento.

Alaíde Costa e Johnny Alf
Vamos de “2 em um” neste vídeo porque foram feitos um para o outro.

A goiabada e o queijo. Alaíde Costa (1935), com incríveis 87 anos e voz preservada, continua em atividade, fazendo pelo menos um show por mês e não parando de lançar DVDs e CDs explorando o melhor da música brasileira, “e fazendo questão de escolher os arranjos com harmonias mais difíceis”, como confidenciou a mim e a uma amiga um dos músicos da banda dela.

Com mais de 50 anos de carreira, evidentemente sua trajetória não foi fácil, porém o talento e a capacidade de extrair o melhor de sua estrutura vocal a fizeram uma perfeita representante não apenas da Bossa Nova, como de outros estilos, como o samba.

Johnny Alf (1929-2010) talvez, na minha opinião, seja o mais sofisticado musicista e pianista brasileiro. Até hoje, suas composições e a sua voz aveludada nos levam a querer escutar com os olhos fechados, abrindo os ouvidos para um puro carinho. Sua discreta homossexualidade foi o mote para uma das canções mais perfeitas de nosso cancioneiro “Ilusão à Toa”

Paulinho da Viola vai de carona, como compositor da música interpretada por Alaíde. Merecia um tópico à parte. Terá.

Para não ser injusto, serão 3 vídeos:


Elza Soares
A responsável por apresentar ao mundo o “planeta fome”, de ter calado o inclemente bongo que exterminava, pelo menos naquela noite, as pretensões de esforçados calouros em se transformar em estrelas e obrigou o compositor Ary Barroso (1903-1964) a proclamar que naquele momento nascia uma estrela atendia pelo nome de Elza Soares (1930- 2022).

Ainda nos seus 20 e poucos anos, com 4 filhos, sem nenhum tostão, Elza apareceu no mais popular programa de calouros do momento, com um vestido de sua mãe, que usava um número 4 vezes maior que o seu, apertado com prendedores de roupa, se assemelhando a um extraterrestre, como ela mesma declarou, desesperada para obter algum dinheiro e comprar remédios para um de seus filhos, gravemente doente.

Ary estava coberto de razão. Nascia para o público uma cantora de voz rasgada, de forte temperamento, que havia aprendido a fazer uns trinados legais com os louva-a-deus e que casou aos 12 anos, obrigada pelo pai.

Infortúnios da vida, perda de filhos, uma relação intensa com o jogador Garrincha (1933 -1983), que a fez ser odiada por grande parte do Brasil marcaram a sua vida. A ponto de desistir de cantar.

Se não fosse a generosidade de Caetano Veloso (1942) Elza não teria voltado gloriosa e retomado uma carreira que não recorreu aos sucessos antigos, à velha guarda. Sempre vaidosa, cuidava do corpo como ninguém. Uns certos exageros também fizeratím parte dessas reformulações. Mas a voz estava intacta. A relação com os jovens músicos cada vez mais estreita. E o comprometimento com as causas de mulheres, negros e minorias cada vez mais intensa.

Foi escolhida pela voz do milênio pela emissora britânica BBC com todo o merecimento.
Sua recente partida, aos 91 anos, me fez perceber que a eternidade não existe.

Difícil escolher um único vídeo. Mas vai o de uma de suas interpretações mais tocantes.

Extra: O maravilhoso Roda Vida com a cantora, onde ela conta tudo.

Cartola 
Angenor de Oliveira (1908 – 1980), mais conhecido como Cartola, foi um dos mais doces, importantes e enigmáticos poeta, musicista e intéprete da música brasileira. Um dos fundadores da Estação Primeira de Mangueira, Cartola teve uma carreira de altos e baixos, um período de sumiço, cujo motivo ninguém mais saberá porque as únicas pessoas que o sabiam levaram este segredo para o túmulo, e um retorno apoteótico já ao final da vida.

Um típico representante da historia do negro do Rio de Janeiro no século XX, tendo que se mudar para a comunidade em virtude das mudanças da cidade. Vários interprétes cantaram Cartola, mas o sonho de fazer um disco próprio chegou na velhice. Mas chegou a tempo. As suas intepretações, singelas e repletas de lirismo se adaptavam as letras com conteúdos revolucionários de amores, separações e, porque não? Esperança.

Abrirei exceção. Postarei “As Rosas não falam”, uma das letras mais inspiradas de Cartola. E “Acontece”, que contam que sensibilizou o crítico musical mais feroz do Rio de Janeiro.

Edição: Letycia Holanda

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