Obra assinada por 32 autores de instituições acadêmicas e de pesquisa das regiões Norte, Nordeste e Sudeste do país será lançada nesta quarta-feira, em Belém

Claudia Izique | Agência FAPESP – Há consenso entre especialistas: a bioeconomia é chave para o desenvolvimento da Amazônia. Mas, numa região tão vasta quanto complexa, pontilhada por desafios que inibem o desenvolvimento sustentável das cadeias produtivas, a conservação da biodiversidade, o bem-estar, o emprego e a renda das comunidades, cabe indagar: Bioeconomia para quem?

A pergunta dá título ao livro e tem respostas em 12 robustos artigos assinados por 32 autores de instituições acadêmicas e de pesquisa das regiões Norte, Nordeste e Sudeste do país. A obra será lançada nesta quarta-feira (19/06), no Auditório Capacit da Universidade Federal do Pará (UFPA), em Belém.

“Uma bioeconomia bem gerida, sendo essencial para empresas sustentáveis, também deve atender às demandas de extrativistas vegetais, pescadores e povos da floresta”, sublinham na “Introdução” os organizadores do livro, Adalberto Luis Val, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), e Jacques Marcovitch, ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP).

Essa perspectiva pontua cada uma das cinco partes em que se organiza o livro, oferecendo pautas novas para a discussão e recomendações sobre temas relacionados às cadeias produtivas e seu comércio, à organização social, tecnologias, restauração florestal e às dimensões da violência e da ilicitude na região.

“O livro não é fim, mas um meio para abrir diálogo sobre caminhos possíveis para o desenvolvimento sustentável da Amazônia”, explica Marcovitch. Resultado de três anos de trabalho, cada capítulo, ele sublinha, é resultado de uma “expedição”, trazendo ao final um quadro em que estão listadas prioridades, ações e métricas.

As pesquisas sobre as cadeias produtivas e a bioeconomia inclusiva, sintetizadas em Bioeconomia para quem? Base para um Desenvolvimento Sustentável na Amazônia, foram desenvolvidas no âmbito de dois projetos de pesquisas apoiados pela FAPESP (22/14597-8 e 20/08886-1), ambos coordenados por Marcovitch. O estudo também conta com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

“Um livro com esses conteúdos é muito bem-vindo no âmbito do Programa Amazônia+10”, escrevem na “Apresentação” Carlos Américo Pacheco, diretor-presidente da FAPESP, e Márcia Perales Mendes da Silva, presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Amazonas (Fapeam), duas das instituições que integram a iniciativa liderada pelo Conselho Nacional das Fundações de Amparo à Pesquisa (Confap).

Cadeias produtivas sustentáveis

O primeiro artigo traz uma análise da cadeia de valor do açaí, atividade que envolve famílias extrativistas, cooperativas, indústria e agroindústria na produção de mais de 1,6 milhão de toneladas do fruto e que movimenta quase R$ 3 milhões anualmente. Trata-se de uma atividade típica da economia extrativista da Amazônia, descrevem Flora Bittencourt, Manoel Potiguar e Thiara Fernandes, do Instituto Peabiru: “Alto grau de dependência do trabalho familiar, informalidade nas relações de trabalho e nas transações comerciais, produção artesanal, pouco uso de tecnologia, falta de padronização de processos e medidas, alto nível de incertezas, inexistência de suporte de crédito e assistência técnica sistemáticos, baixa densidade de instituições representativas e/ou interlocutoras do setor e vulnerabilidades legais e normativas, especialmente relacionadas a crianças e adolescentes e à segurança do trabalho”. Eles sugerem uma lista de ações prioritárias, que vai do desenvolvimento de tecnologias para colheita até o aumento de oferta de crédito, passando por política de repartição de benefícios justa e equitativa.

Outro fruto do extrativismo é o cacau, tratado no segundo capítulo como uma das prioridades da bieconomia da Amazônia tanto no que se refere à cadeia de commodities – que atende a demandas das empresas de processamento e representa 95% do mercado global – como a de produto de qualidade, exigido por fabricantes de chocolates especiais. A Amazônia responde por mais da metade das 269 mil toneladas da produção brasileira, com o cultivo, a colheita, a fermentação e a secagem do cacau, atividades que retêm algo entre 4% e 6% do valor global da cadeia produtiva. Num mercado regido pelo preço e contratos futuros, a apropriação de valor por parte dos produtores é reduzida, segundo Lucas Xavier Trindade, da Universidade Estadual de Santa Cruz, na Bahia, e Fernando Antonio Teixeira Mendes, da Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac). “É a governança que permite que o preço seja efetivamente apropriado pelos produtores”, afirmam.

No terceiro capítulo, os autores apontam a pesca ilegal, prática comum na Amazônia, como um dos principais entraves para a cadeia de manejo do pirarucu. “A fiscalização é praticamente inexistente, em grande parte devido à falta de recursos humanos e financeiros do Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] para abranger uma região tão vasta e complexa como a Bacia Amazônica”, escrevem Maria Sylvia Macchione Saes, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP, Elis Regina Monte Feitosa (FEA-USP), Alexsandra Bezerra da Rocha, da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), Paraíba, e James Douglas Oliveira Bessa, do Núcleo de Biodiversidade e Florestas no Amazonas. São os ribeirinhos das áreas de manejo que arcam com os custos de um sistema de vigilância dispendioso e perigoso. Os autores recomendam uma série de medidas, entre elas a criação de um certificado de procedência e multas, monitoramento dos lagos por satélite, drones e por equipes de agentes ambientais voluntários recrutados na comunidade.

A primeira parte do livro termina com um capítulo sobre a meliponicultura – a criação de abelhas sem ferrão –, prática sustentável que promove a conservação da biodiversidade, a polinização de cultivos e a geração de renda para as comunidades locais. “É imperativo desenvolver melhorias nas técnicas de manejo e produção, visando não apenas aumentar a produtividade, mas também assegurar a qualidade do mel disponibilizado no mercado”, escrevem Vera Imperatriz-Fonseca, do Instituto de Biociências da USP, Camila Maia-Silva, bolsista do CNPq, Ana Carolina Mendes dos Santos, do Ministério do Meio Ambiente (MMA), além de Hermógenes Sá de Oliveira e João Meirelles Filho, ambos do Instituto Peabiru, que assinam o artigo.

Cidadania, conhecimento e tecnologia

A segunda parte do livro reúne dois artigos que tratam do fortalecimento da “cidadania amazônica” e das organizações sociais no contexto da bioeconomia “autêntica” e sustentável. No primeiro, os autores destacam quatro pilares para uma bioeconomia propulsora do desenvolvimento: desmatamento zero, inclusão e participação dos povos originários e seus saberes, diversificação dos modos de produção e divisão equitativa dos benefícios oriundos da sociobiodiversidade.

“Mas, para que isso aconteça, será preciso implementar um sistema de governança biorregional e de ‘diplomacia ambiental’ para promover uma melhor gestão dos recursos naturais e fortalecer os direitos humanos e territoriais, enquanto se promove o reconhecimento de diferentes identidades, direitos e sistemas de conhecimento”, escrevem Olivia Zerbini, Patrícia Pinho, Ariane Rodrigues e Paulo Moutinho, todos do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).

No segundo artigo, José Augusto Lacerda Fernandes, da UFPA, e Heloise Berkowitz, pesquisadora do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), da França, tratam das metaorganizações como estratégia para alcançar todo o potencial transformador da bioeconomia. “É preciso contar com um ecossistema propício ao seu desenvolvimento e com o engajamento de diversas partes interessadas no estabelecimento de uma bioeconomia inclusiva na região.” Isso requer novos mecanismos de governança, principalmente no que diz respeito à articulação com as populações tradicionais envolvidas nesse processo (indígenas, quilombolas, moradores locais, pescadores e extrativistas etc.), demandando formas de organização calcadas na colaboração.

Informação e novas tecnologias

A parte três do livro destaca o potencial de exploração dos produtos florestais não madeireiros (PFNMs) e do bioma da Amazônia por meio de novas tecnologias. No caso dos PFNMs, destacam-se o açaí, o cacau, a castanha-do-brasil, babaçu, mel e pirarucu, entre outros. No entanto, muitos PFNMs estão associados a níveis baixos de produtividade e renda. “Fatores como a geografia econômica, nível de maturidade dos sistemas de produção e de mercado e características biológicas dos produtos podem interferir nos resultados de sustentabilidade econômica e ambiental. Esses fatores precisam ser levados em consideração para desenhar intervenções que criem as condições mais adequadas para um desenvolvimento local e inclusivo”, afirmam no primeiro artigo Tomas Rosenfeld e Peter Ponschen, da Universidade de Freiburg, na Alemanha.

No segundo artigo, Adalberto Val e Isabela Litaiff, da Universidade Nilton Lins, no Amazonas, lembram que há um “eldorado inteiro” a ser desvendado na biodiversidade da floresta, desde que se associe o conhecimento dos povos tradicionais às ferramentas hoje disponíveis, como, por exemplo, a genômica, a transcriptômica e a proteômica. Mas isso exige “estudos contínuos, envolvendo experimentos diversos, testando novos produtos e processos e aperfeiçoando os já conhecidos. Requer uma profunda interação dos conhecimentos produzidos pelos povos originários da floresta com os conhecimentos modernos produzidos nas bancadas dos laboratórios. A bioeconomia existirá na medida direta do aprofundamento dos conhecimentos sobre um mundo desconhecido, um admirável mundo em ser”.

Mas isso não basta. “Para poder capturar esse potencial, é necessária uma visão alternativa e complementar à bioeconomia da sociobiodiversidade – a bioeconomia computacional”, sublinham Juan Carlos Castilia-Rubino, cofundador do Earth Biogenome Project, e Luciana Russo Correa Castilla, da FEA-USP, no terceiro artigo. Essa tecnologia integra múltiplas disciplinas da ciência e engenharia, como sequenciamento genético, inteligência artificial aplicada à biologia, edição genética, biologia sintética e automação do processo de desenvolvimento de bioprodutos com robótica laboratorial, eles explicam. “Seu foco é decifrar o mundo dos dados biológicos para a produção de bioprodutos avançados de qualidade única, apoiando-se mais na biologia in silico do que na biologia in vitro.”

A domesticação da floresta

A restauração florestal e as práticas agrícolas são o tema da quarta parte do livro. No primeiro capítulo, os autores analisam a distribuição do desmatamento na região, levando em conta a diversidade de atores envolvidos e a necessidade de desenvolver estratégias de restauração florestal diferenciadas, e descrevem também as estratégias mais promissoras para a restauração em larga escala da Amazônia, considerando o potencial de geração de renda, os benefícios socioambientais e a escalabilidade dos modelos de restauração. “Torna-se primordial reconfigurar a perspectiva da restauração, passando de uma abordagem percebida como punitiva para uma que a reconheça como uma alternativa viável e sustentável tanto economicamente quanto na perspectiva de benefícios ecológicos e climáticos”, afirmam Nathalia Nascimento e Pedro Henrique Santin Brancalion, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP.

O segundo capítulo trata das práticas agrícolas dos povos indígenas. Os autores lembram que, no século 16, a paisagem da Amazônia era “domesticada” e que “os diferentes povos amazônicos do passado e do presente parecem partilhar um modo comum de se relacionar com o que chamamos de natureza”, escrevem Camila Loureiro Dias e Joana Cabral de Oliveira, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), além de Vera Lúcia Aguiar Moura, do povo Tukano da Terra Indígena Alto Rio Negro, no Amazonas. Para eles, foi exatamente esse modo de relação que permitiu a conservação e o incremento da biodiversidade amazônica. “Em outras palavras, se há biodiversidade, ela foi e continua a ser, em grande medida, ativamente construída pelos povos indígenas por meio da relação que estabelecem com os outros seres que compõem e habitam a floresta. Uma relação que envolve respeito, que não implica em domínio e que valoriza a diversidade.” Para os autores, no que se refere à promoção da biodiversidade, temos muito a aprender com as práticas agrícolas dos povos indígenas.

Violência e ilicitude

Marcovitch e Adalberto Val assinam o último artigo do livro, sobre um tema tão sensível quanto urgente. “Já não se trata de conflitos pontuais como aqueles que perduram há décadas, e sem solução, mas de uma verdadeira ocupação de territórios locais por 22 grupos criminosos e/ou facções, que atuam em 178 municípios da região. Nos demais países amazônicos, os desafios se assemelham. Há, portanto, um cenário de dimensões continentais que precisa ser enfrentado”, ressaltam. Lembram ainda que, diariamente, “milhões de habitantes ribeirinhos da Amazônia, um dos maiores ativos ambientais do planeta, se nutrem de alimentos contaminados” e sublinham a urgência da descontaminação em escala de todos os rios que apresentem indícios de mercúrio.

“Uma concertação entre governo e sociedade civil, dedicada ao bem-estar humano e à conservação da natureza no bioma Amazônia, deve levar ao Supremo Tribunal Federal e à Procuradoria Geral da República, para inspirar decisões de ministros e procuradores, recomendações formuladas pelo FBSP [Fórum Brasileiro de Segurança Pública] e estudos focados no envenenamento dos rios amazônicos. Cabe valer-se dos mecanismos previstos em organizações regionais. Tanto organizações governamentais, como a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (Otca), quanto não governamentais, como a Rede Interamericana de Academias de Ciências (Ianas) e a InterAcademy Partnership (IAP), para participar desse esforço e expandir seu escopo.”

O livro Bioeconomia para quem? Base para um Desenvolvimento Sustentável na Amazônia foi publicado pela Com Arte, editora-laboratório do Curso de Editoração da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, e teve apoio da USP, do Inpa, da UFPA e do Instituto Peabiru. A íntegra do livro está disponível em: www.livrosabertos.abcd.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/1337.

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