Vencer o desafio da mobilidade em grandes cidades requer políticas públicas baseadas em evidências

Maria Fernanda Ziegler | Agência FAPESP – Crescimento populacional, adensamento urbano e malha viária planejada décadas atrás. Essa combinação de fatores tem transformado a mobilidade em um dos principais desafios das grandes cidades brasileiras. Nesse contexto, diversas pesquisas têm sido feitas com o objetivo de subsidiar políticas públicas e propor alternativas tecnológicas que facilitem o deslocamento de pessoas e veículos pelas vias públicas.

“A questão do transporte e da mobilidade nos grandes centros urbanos pode ser resumida como uma batalha por espaço”, afirmou Orlando Strambi, professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), durante a mais recente edição do Ciclo ILP-FAPESP de Ciência e Inovação, realizada em 29 de agosto.

Em sua palestra, Strambi explicou que, ao longo dos anos, as cidades que hoje apresentam melhor mobilidade estruturaram suas políticas em quatro eixos: desestímulo ao uso do automóvel, melhoria do transporte coletivo, estímulo ao uso do transporte ativo (caminhada ou bicicleta) e integração entre as políticas de uso do solo e transportes.

“Só que isso não foi feito em muitos locais e o resultado é que hoje não está bom nem para o pedestre, nem para quem tem carro, nem para o usuário de transporte público e muito menos para a saúde, a economia ou o planeta. É preciso ter em mente que o transporte molda as cidades. Precisamos escolher em qual cidade queremos viver”, sublinhou.

O professor ressalta que as mudanças para a melhoria da mobilidade urbana demandam muito do orçamento municipal e, desse modo, precisam ser certeiras. Isso requer políticas públicas baseadas em evidências científicas.

Para a capital paulista, por exemplo, foi desenvolvido o estudo BikeScience. Ao correlacionar dados de 40 milhões de viagens diárias de bicicleta, de outras 6 mil rotas que são feitas em outros modais (e que poderiam ser realizadas de bicicleta) e dados geográficos da cidade de São Paulo, pesquisadores da USP desenvolveram um índice de “ciclabilidade” (termo que se refere a rotas “cicláveis”, ou seja, que podem ser percorridas de bicicleta) para a capital paulista.

O estudo ranqueou as principais rotas que poderiam ser usadas por ciclistas na cidade e que, por serem estratégicas para a mobilidade da região, deveriam receber investimento em infraestrutura de ciclovias e ciclofaixas.

Apoiada pela FAPESP e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a ferramenta BikeScience usa dados de sistemas de compartilhamento de bicicletas e da pesquisa Origem e Destino do Metrô para analisar possíveis padrões no uso das bicicletas, gerando assim conhecimento que pode ser aproveitado para apoiar o planejamento futuro e melhorias em relação ao ciclismo urbano.

“Diferentemente de outras cidades no mundo, como Amsterdam (Países Baixos), onde 36% da população utiliza bicicleta para se locomover, Santos (15%) ou Porto Alegre (5%), na capital paulista apenas 1% das pessoas adota esse tipo de transporte. Fomos investigar o motivo e observamos que o automóvel ainda é um sinal de status. Mas existe também a questão de segurança viária. Quando não tem infraestrutura adequada, as pessoas não andam de bicicleta por medo”, comentou Fabio Kon, professor do Instituto de Matemática e Estatística (IME-USP) e coordenador do projeto BikeScience.

A ferramenta de ciência de dados tem código aberto para a análise e planejamento de mobilidade ativa em ambientes urbanos. Foi criada em um projeto colaborativo por pesquisadores do projeto InterSCity da USP e pelo MIT Senseable City Lab, do Massachusetts Institute of Technology, nos Estados Unidos (leia mais em: agencia.fapesp.br/32345/).

“A ideia da ferramenta é oferecer insights para o gestor público. Já é sabido que estimular o uso de bicicletas traz vantagens para as cidades. Elas ocupam menos espaço que carro, geram menos trânsito, engarrafamento, atropelamento e morte. Para os usuários há melhora na saúde física e mental – fora a economia. Os benefícios para o meio ambiente são inúmeros: menor pegada de carbono, não gera poluição do ar nem poluição sonora”, afirmou Kon.

No projeto, os pesquisadores da USP realizaram entrevistas com 185 possíveis usuários de bicicleta. Com isso, eles identificaram que a insegurança causada pela falta de infraestrutura adequada é considerada o maior entrave para o uso da bicicleta como meio de deslocamento na cidade.

“Fomos buscar evidências científicas para definir onde ciclovias e ciclofaixas devem ser construídas de forma a maximizar o número de pessoas que vão passar a usar a bicicleta e como priorizar a expansão da infraestrutura cicloviária de forma que uma prefeitura possa planejar os próximos passos desse crescimento”, contou.

Dessa forma, os pesquisadores tabularam 40 milhões de viagens possíveis da Pesquisa Origem e destino do Metrô – as principais viagens realizadas na cidade por outros modais – e visualizaram no mapa urbano qual seria o traçado caso elas fossem realizadas por bicicleta.

“Computamos o tamanho e a inclinação das rotas [se o trecho era muito íngreme] e as categorizamos por nível de facilidade. Com isso criamos o índice de ciclabilidade”, relatou.

Depois de categorizar as rotas pelo índice de ciclabilidade, os pesquisadores identificaram 6 milhões de viagens possíveis que atualmente são feitas em outros modais e que seriam muito facilmente realizadas por bicicleta, estipulando como um indicativo para a prefeitura de onde é mais importante construir novas ciclovias. “Entre as áreas que mais chamam a atenção, há trechos importantes, por exemplo, na zona leste e na zona norte da capital”, disse.

Kon ressalta que, com as novas ciclofaixas ou ciclovias, seria possível reduzir 1,5 milhão de viagens de carro, que seriam transformadas em viagens de bicicleta. “Imagina o quanto reduziria de trânsito, poluição?”, indagou.

Modernização

O impacto de pequenas alterações em vias públicas – as chamadas intervenções de retrofit – sobre a segurança e o conforto de pedestres foi tema de um estudo desenvolvido por Marcela Noronha Pinto de Oliveira e Souza durante seu doutorado, na Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

A pesquisa identificou locais-chave para esse tipo de intervenção por meio de procedimentos computacionais, como sintaxe espacial, linguagem de padrões e gramática.

“Para transportar mais gente sem ter que expandir a malha viária, é preciso promover a ‘caminhabilidade’ [palavra derivada do termo em inglês walkability], o transporte coletivo e desestimular o uso do carro”, diz Souza. “No meu estudo, desenvolvi uma metodologia computacional para formular e gerar múltiplos cenários de retrofit e assim avaliá-los de acordo com seu potencial para melhorar a caminhabilidade”, contou.

O trabalho foi realizado no campus da Penn State University, nos Estados Unidos, que já é voltado para pedestres. A pesquisadora optou pela escolha de projetos menos ambiciosos e que podem desencadear mudanças significativas para a mobilidade urbana. “Eles foram pensados e planejados de maneira a incrementar as redes interconectadas e que são geradas a partir das características iniciais da rua”, disse.

Já o pesquisador Rodolfo Ipolito Meneguette, do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos, apresentou um sistema de transporte inteligente que foi testado por três meses no município de Catanduva, no interior paulista.

“Nossa proposta é que veículos como bicicletas e patinetes possam ser utilizados como ferramentas de monitoramento em sistemas de transporte inteligentes”, explicou.

O sistema desenvolvido pela equipe de Meneguette integra usuários e prefeitura. “O problema dos aplicativos comerciais de hoje é que o usuário fica responsável por marcar os eventos [lentidão, acidente, rua fechada etc.], mas não há nenhuma confirmação se esse evento está ocorrendo ou não. No nosso sistema, as informações são confirmadas pela prefeitura, o que abre um canal de transparência e de integração entre cidadãos e o município”, afirmou.

As apresentações do Ciclo ILP-FAPESP de Ciência e Inovação: Inovações para a Mobilidade Urbana podem ser assistidas na íntegra em: www.youtube.com/wa…b_channel=Alesp.

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