Estudo aponta áreas prioritárias para a conservação de crustáceo ameaçado de extinção

Agência FAPESP* –André Julião | Agência FAPESP – Entre dezembro e abril, é possível notar uma peculiar migração na Ilha da Trindade, que compreende o território mais a leste do Brasil, a 1.200 quilômetros da capital do Espírito Santo, Vitória. Vindos das montanhas, centenas de caranguejos-amarelos (Johngarthia lagostoma) andam em direção à praia, onde copulam e liberam suas larvas ao mar.

Caranguejos-amarelos se adensam na praia em meio à vegetação. Presença de espécies vegetais é fundamental para alimentação e abrigo da espécie (foto: Márcio Camargo Araújo João)

Depois que as larvas se desenvolvem, os indivíduos juvenis buscam ambientes terrestres, em um processo de migração ainda mais desafiador que envolve a busca de áreas de residência nas partes mais altas da ilha, como o Morro do Príncipe, 136 metros acima do nível do mar, ou o Pico do Desejado, com altitude de 612 metros. Quando se tornam adultos, refazem o caminho dos mais velhos até as praias, como a dos Andradas, que são áreas reprodutivas. Assim, reiniciam o ciclo vital.

Essas informações básicas, mas essenciais à conservação dessa espécie em perigo de extinção, foram algumas das obtidas no âmbito de um projeto apoiado pela FAPESP. Os resultados da pesquisa foram publicados na revista Marine Ecology.

O grupo, liderado por pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp), conta ainda com autores das universidades federais do ABC (UFABC) e de Santa Catarina (UFSC).

Equipe de pesquisadores no Pico do Desejado. Com 612 metros de altitude, montanha é área de residência dos caranguejos-amarelos na Ilha da Trindade (foto: Márcio Camargo Araújo João)

Após uma série de análises, os autores concluíram que o Morro do Príncipe, onde foi encontrada a maior proporção de juvenis, e a Praia dos Andradas, local com maior proporção de fêmeas com ovos e indivíduos adultos, devem ser considerados áreas prioritárias para a conservação da espécie. A Praia das Tartarugas e o Pico do Desejado foram os outros dois pontos analisados, considerados locais de residência para esses animais.

“Ainda que hoje a Ilha da Trindade se encontre com expressiva preservação, por estar dentro de uma Unidade de Conservação, é importante considerar cuidados especiais para essas áreas, para a implantação de ações de conservação mais efetivas. No Morro do Príncipe, os juvenis permanecem até se tornarem adultos, o que é importante para manter a população em longo prazo. A Praia dos Andradas, por sua vez, tem vital relevância à reprodução”, explica Márcio Camargo Araújo João, que realizou o trabalho como parte de seu mestrado com bolsa da FAPESP no Instituto de Biociências do campus do Litoral Paulista da Universidade Estadual Paulista (IBCLP-Unesp), em São Vicente.

Caranguejo terrestre

Além da Ilha da Trindade, a espécie ocorre no Brasil em Fernando de Noronha e no Atol das Rocas. A quarta ilha onde ocorre é em Ascensão, território ultramarino britânico no Atlântico. A única ocupação humana na Trindade, que na verdade compreende o pico de uma montanha submersa, é uma base da Marinha do Brasil e sua estação científica. No total, cerca de 40 pessoas se revezam a cada dois meses nesse território insular de 13 quilômetros quadrados.

Enquanto a maior parte das espécies de caranguejo passa a vida toda em contato com a água, o caranguejo-amarelo faz parte de um grupo que se adaptou às florestas, utilizando o mar apenas durante o desenvolvimento e dispersão larval. Por isso, a vegetação preservada é um importante componente para a conservação da espécie.

“A floresta da ilha é menos expressiva do que a de Ascensão, por exemplo. Mas, em Trindade, a espécie tem uma população ainda abundante e muito bem estabelecida, se alimentando não somente da vegetação local, mas de ovos e filhotes de tartaruga. Lá, o caranguejo-amarelo é uma espécie sem concorrentes, sendo um predador de topo de cadeia”, contextualiza Marcelo Antonio Amaro Pinheiro, professor do IBCLP-Unesp que coordenou o estudo.

Por não terem concorrentes na Trindade, caranguejos-amarelos são predadores de topo de cadeia na ilha, onde se alimentam até mesmo de filhotes de tartaruga (foto: Márcio Camargo Araújo João)

“Por sua vez, Fernando de Noronha, com seus 3.167 habitantes e quase 150 mil turistas recebidos só em 2022, tem um impacto maior da presença humana, desde a urbanização até a presença de espécies introduzidas, como gatos, cachorros e ratos”, completa.

O pesquisador é responsável pelas avaliações das espécies de crustáceos brasileiras sob ameaça de extinção junto ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). A versão mais recente da lista considera o caranguejo-amarelo na categoria “em perigo” no Brasil.

O estudo pode ajudar a inclusão dessa espécie na Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas, da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), uma referência global em que o caranguejo-amarelo ainda não foi incluído.

Noites na Trindade

A equipe avaliou a presença da espécie nas duas praias e nas duas montanhas durante o período reprodutivo, entre dezembro e abril. No total, foram duas temporadas na ilha, de dois meses cada, de fevereiro a abril de 2019 e de dezembro de 2019 a fevereiro de 2020.

Sempre à noite, quando são mais ativos, os caranguejos eram escolhidos aleatoriamente e tinham medidos sua largura da carapaça e o comprimento das quelas, que são as patas em formato de pinça.

O sexo de cada indivíduo era definido pelo formato da carapaça e pelo número de pleópodos – as pequenas pernas presentes no abdome do animal, usadas durante o acasalamento e para carregar os ovos. Por ser uma espécie ameaçada, o caranguejo-amarelo não pode ser capturado. Portanto, os indivíduos utilizados no estudo eram liberados após as medições a cada noite de estudos.

Os pesquisadores observaram que os machos eram mais frequentes na população, um padrão observado em outros caranguejos terrestres, embora na Praia dos Andradas a proporção de adultos tenha sido similar entre os sexos. Os autores acreditam que as fêmeas da espécie sofram maior mortalidade pelo estresse térmico e pelo gasto de energia durante as migrações entre o morro e a praia (e vice-versa), por vezes carregando ovos, o que é acentuado pela falta de vegetação e abrigo nas praias.

“Observamos muitas fêmeas mortas próximas à praia, na área reprodutiva, confirmando informações de pesquisadores que estudaram o caranguejo-amarelo em Ascensão”, relata João.

Na ilha britânica, porém, foi observada uma baixíssima taxa de indivíduos juvenis, apenas 1%, um sinal de envelhecimento da população que pode levar a uma extinção local no futuro. A proporção de 20% de jovens em Trindade (podendo chegar a 30% no Morro do Príncipe) é considerada característica de vitalidade populacional.

“Esse é o retrato que temos até o momento, porém, é preciso continuar monitorando essa espécie em outros pontos da ilha, em busca da confirmação de padrões que podem ter passado despercebidos. Além disso, a investigação concomitante desses parâmetros em outras ilhas brasileiras de ocorrência da espécie permitiria um panorama integrativo que embase um Plano de Conservação mais efetivo em nível nacional”, encerra João.

O estudo teve apoio da FAPESP ainda por meio de bolsa de pós-doutorado concedida a Rafael Campos Duarte, coautor do artigo.

O trabalho Population biology of the endangered land crab Johngarthia lagostoma (H. Milne Edwards, 1837) in the Trindade Island, Brazil: Identifying crucial areas for future conservation strategies pode ser encontrado em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/maec.12778.
 

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