*Agência FAPESP
Os machos de algumas espécies de aranhas costumam canibalizar os filhotes de concorrentes ou simplesmente abandonar a prole quando não podem ter certeza da paternidade. Mas, no caso da Manogea porracea, a praxe é cuidar de quaisquer filhotes ou ootecas (conjuntos de ovos embrulhados em seda) que forem encontrados em teias características da espécie.
Esse comportamento de cuidado paternal, inédito entre aranhas solitárias, foi observado na M. porracea pela primeira vez em 2016. Agora, os pesquisadores demonstraram que os machos da espécie protegem filhotes e ovos contra predadores mesmo sem saber se são realmente seus pais.
Os achados foram publicados na revista Ethology por pesquisadores das universidades do Estado de Minas Gerais (UEMG), Federal de Uberlândia (UFU) e Estadual de Campinas (Unicamp).
“Os machos fazem uma teia acima da construída pela fêmea ainda imatura sexualmente. Quando ela se torna fértil, eles copulam. O macho pode continuar na teia protegendo a parceira contra competidores ou sair para tentar acasalar novamente, o que não garante que outros machos não acasalem também com aquela fêmea que ele deixou. Quando a parceira, por alguma razão, morre, ele desce para a teia dela e cuida dos filhotes. No nosso experimento, eles tomaram conta da prole mesmo quando os colocamos em uma teia com os filhotes de outro casal”, explica Rafael Rios Moura, professor do Departamento de Ciências Biológicas da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), em Ituiutaba.
Moura realizou o trabalho durante um estágio de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Biologia Animal do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, com bolsa da FAPESP e supervisão do professor João Vasconcellos Neto, um dos coautores do trabalho.
Os pesquisadores ainda não conseguiram determinar por que grande parte das fêmeas da espécie desaparece após pôr os ovos, mas acreditam que, por acumularem bastante lipídeos no período reprodutivo – e, portanto, estarem mais gordinhas -, possam atrair mais predadores do que os machos.
“Por outro lado, os machos dessa espécie constroem uma teia acima da teia da parceira e podem continuar a se alimentar durante a fase adulta. Esse comportamento também é raro em aranhas e pode aumentar a longevidade dos machos de M. porracea. O cenário cria oportunidades para os machos cuidarem dos filhotes. Na ausência dos pais, a sobrevivência da prole é muito baixa. Por isso, o cuidado paternal é uma inovação evolutiva importante para a espécie”, diz Moura, que coordena o Núcleo de Extensão e Pesquisa em Ecologia e Evolução (NEPEE) na UEMG e realiza divulgação científica no projeto “Rios de Ciência” nas redes sociais.
O comportamento só havia sido descrito antes em uma espécie africana de aranha (Stegodyphus dumicola), que vive em grandes teias comunitárias nas quais vários machos e fêmeas cuidam tanto dos próprios filhotes e ovos como dos de outros casais, o que é chamado de cuidado aloparental.
No estudo publicado em 2017, que descreveu o cuidado paternal pela primeira vez, a equipe de Moura mostrou que, ao final da estação reprodutiva, 68% das ootecas eram cuidadas por machos e que uma quantidade significativamente maior de filhotes nascia de ovos vigiados por esses indivíduos, em comparação aos que não recebiam cuidado nenhum.
Pai é quem cuida
A M. porracea ocorre do Panamá à Argentina, em cenários ecológicos bem distintos. A população estudada pelo grupo de pesquisadores brasileiros, porém, vive em plantações de eucalipto cercadas de áreas nativas de Cerrado na Fazenda Nova Monte Carmelo, em Estrela do Sul, Minas Gerais. As teias são construídas próximas ao chão, utilizando como suporte galhos e a camada de folhas sobre o solo (serrapilheira).
Em laboratório, os pesquisadores observaram 40 machos, 57 fêmeas e 87 ootecas. Todos os machos foram encontrados na natureza, em teias com esses conjuntos de ovos. No laboratório, as fêmeas foram colocadas em caixas transparentes com galhos de eucalipto e bolas de algodão (para manter a umidade) por pelo menos 24 horas, para que construíssem as teias. Em seguida, cada uma foi removida e substituída por um macho e uma ooteca que não era necessariamente dele.
Para verificar se os machos protegem a prole adotiva de predadores, foram colocadas nas caixas aranhas de duas espécies (Faiditus caudatus e Argyrodes elevatus, ambas da família Theridiidae), conhecidas por consumirem ovos e adultos da M. porracea. As observações foram realizadas por dez dias. Em algumas das caixas, usadas como controle, os predadores foram colocados sem o macho protetor e comeram os ovos. Nas outras, os machos foram observados assumindo uma posição de proteção das ootecas e dos filhotes e espantando os predadores quando eles se aproximavam. Em uma delas, o predador foi morto pelo macho.
“O número de filhotes que saiu das ootecas foi duas vezes e meia maior nos tratamentos em que os machos estavam presentes, mesmo sem poderem se certificar da paternidade. E tanto os pais biológicos quanto os adotivos foram igualmente efetivos na proteção contra predadores”, diz Moura.
Além de espantar predadores, os pesquisadores observaram em outros experimentos mais dois comportamentos que caracterizam cuidados paternais na espécie: os machos constantemente sugam as ootecas quando elas estão molhadas, provavelmente retirando o excesso de umidade que pode atrair fungos ou prejudicar o desenvolvimento dos ovos. Fora isso, eles reconstroem fios de sustentação da teia, que, sem esse cuidado, poderia cair no chão e expor os ovos a formigas e outros predadores. Futuros trabalhos vão descrever em detalhes esses comportamentos.
A estratégia da aranha de proteger qualquer prole da espécie, portanto, pode ser resumida pelos últimos versos do poema “Ode on a Distant Prospect of Eton College”, do poeta inglês Thomas Gray (1716-1771), que Moura usa no título do artigo: “Onde a ignorância é uma bênção, é loucura ser sábio”.
O artigo “Where ignorance is bliss, ’tis folly to be wise”: Indiscriminate male care in a neotropical spider, de Rafael Rios Moura, Isabella Dias Oliveira, João Vasconcellos-Neto e Marcelo Oliveira Gonzaga, pode ser lido por assinantes em: onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/eth.13112.
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