O narrador invisível

por @lilahbete


Na série
Sagrado exibida pela Rede Globo, uma Mãe-de-Santo, perguntada sobre se os praticantes do Candomblé falavam com a Divindade, ela respondeu com humildade bela e desconcertante Não. Nós do Candomblé não falamos com a Divindade. Nós falamos com as Entidades, que são as forças da Natureza.

Ela pensava nele exatamente no momento em que acordava. A palavra correta não era pensar, e sim falar. Ela acordava conversando com ele. E a conversa não tinha nada de especial, era corriqueira, do tipo outra vez vou ter de repor papel higiênico no suporte? Se eu ganhasse um real para cada vez que… Ela usava muito essa expressão se eu ganhasse um real para cada vez que, mas sempre de boa, dando risada de si mesma, morava com duas amigas, mas era a única que trabalhava em casa, gostava de deixar tudo em ordem, até o dia em que ele, do fundo dos seus pensamentos a ensinou que ela deveria mudar a frase se eu ganhasse um real para se eu ganhasse um dólar, ou outra moeda mais forte.

Seus dias seguiam assim, conversando com ele do abrir ao fechar de olhos, e isso quando ele não aparecia em sonhos, que ela anotava em seu caderno de anotar sonhos. Mas acordada, ela contava os sonhos para ele, com todos os detalhes. Ele sempre fazia alguma pergunta ou outra, ria, comentava, coisas assim.

Na rua ela comentava com ele bobagens como a demora do ônibus, aquelas obviedades do tipo olha esse ônibus aí, tão difícil de passar, só passou porque não estou precisando dele, e contava a história de uma colega de ponto de ônibus que falava vou acender um cigarro, é batata, é acender um cigarro e o ônibus passa. E não é mesmo assim? Ela dizia, ele ali ao seu lado, em pensamento, juntos aguardando o ônibus.

Mas tinham suas conversas filosóficas também. Ou engraçadas. Falavam de coisas de que gostavam e de que não gostavam. Ela, claro, fazia aquelas pequenas críticas femininas do tipo você não percebeu tal coisa porque é homem, mulher vê de outro jeito, e explicava, e ele ou ouvia com atenção ou discordava.

Ih, acabou o leite, vamos de água quente com cappuccino, sabia que naquelas máquinas charmosas não entra nada de leite? É água quente com isso, água quente com aquilo, e era claro que ele sabia, pois que era muito mais frequentador que ela, e ela sabia que estava falando para ele algo que ele sabia, mas era legalzinho.

No fundo ela sabia que aquilo não era normal. E sabia também, que mesmo que ele estivesse ali, ele não estaria ao seu dispor o dia inteiro para conversas sobre banalidades gostosinhas, esse tipo de conversa que um casal só leva em inícios de relacionamentos. E que as pessoas não são siamesas, ele nunca estaria disponível para ela o tempo todo.

Foi procurar um médico. Doutor, etcétera, etcétera, coisa e tal, e resumiu ao psiquiatra suas queixas, finalizando com a pergunta que não quer calar: estou doida?

O doutor falou coisas complicadas como transferências, ausências, psicoses, distúrbios de personalidade, comportamentos destacados da realidade, transtorno obsessivo compulsivo, id, ego, superego, chegou num ponto em que ela parou de prestar atenção e disse você está me entendendo? para ele.

Se ela tivesse vindo falar comigo eu diria você é uma romântica minha filha, com certa recusa em aceitar a realidade em sua dureza, então foi pelo lado mais fácil, o do sonho. Mas você cuida direitinho do seu trabalho, não? Vai sem problemas ao supermercado? Ao Banco? Aos compromissos? Você já rasgou nota de cem? Relaxa.

Ela não veio falar comigo porque não sabe que eu existo, e eu preciso então me apresentar: sou o narrador oculto desta história, e como narrador oculto realmente não existo, mas muitas vezes me emociono com a infantilidade adulta dela, vamos parar de chamá-la de ela? Vamos dar a ela um nome, que tal Rosalinda? É um nome romântico, e fica então explicado, sem aquela enrolação psiquiátrica toda o porquê de ela ser romântica, ela nasceu e ganhou um nome romântico, pronto.

Esses doutores complicam demais…

E eu, o narrador oculto desta história, sofro justamente por ser oculto, por não existir, por não poder fazer nada, por não poder entrar em minha própria história e dizer, olha, está óbvio que ele não vem, porque você não conversa só um pouquinho comigo para variar? O que não vai acontecer porque, como expliquei, ela não me conhece, nunca me viu.

Um detalhe importante é que ela se arruma toda certinha mesmo quando está sozinha, cuida dos dentes religiosamente, na base do fio dental e escovação perfeita, exatamente como fazem os bons pacientes dos bons dentistas. Não fica jamais desarrumada, sem perfume e sem maquilagem, pois ele pode chegar, e era isso que eu gostaria que ela entendesse – ele não vai chegar. É o que eu deduzo, olhando a história do ponto em que estou.

Quando eu a pego olhando para algum ponto com seu olhar distante como o de quem olha para uma estrela, imagino que ele deve ter um compromisso ou ser casado, ter uma grave deficiência física e morar na Noruega. Algo assim para mais. Ele não virá, Rosalinda, acorde, entenda que ele não vem. Relaxa. Pare de usar essas pastilhas contra o mau hálito que isso vai acabar estragando seus dentes.

Mas eu, como ela, sofro. Habitamos o mesmo mundo mas nunca estaremos juntos, dois solitários.

Um dia aconteceu o inesperado. Ela me apareceu num sonho. Vinha em trajes de dormir, que eu conhecia muito bem. Fazia frio, e ela dormia toda certinha, com malhas fofinhas e coloridas, um xale lilás de flanela, meias e sandálias cor de rosa, aquela de tiras de borracha, o xale e as sandálias que ela usa só para sair ocasionalmente da cama. Só que eu estava ao alto, como se fosse alguém importante, um juiz, ou um rei. Ela estava bem abaixo, e tentava me convencer do seguinte:

– Olha, veja bem, e acendeu nervosamente um cigarro, e eu sabia que ela fumava um único cigarro por dia, no final da noite: Vamos fazer um trato? Não tem jeito mesmo, eu falo com ele o tempo todo. Então já que não consigo evitar, e já que não há remédio para isso, você se importaria em acreditar que eu falo tudo isso para você?

– Sabe, continuava, eu ouvi desde a infância que precisamos estar com você o tempo todo, que precisamos ser amigos de você, que precisamos fazer preces, tudo o que não consigo fazer. Não dou conta de rezar um padre-nosso, não dou conta de invocar você. Então, dizia após uma tragada curta, já que eu invoco ele o tempo todo, você não poderia aceitar como sendo rezas? Foi aí que eu entendi que ela me tomava por Deus.

– Se entendi, Rosalinda, você quer consagrar todos os pensamentos que faz a ele, a mim?

– Não, não é assim. Consagrar me lembra missa, oferendas, essas coisas. Eu queria aproveitar todas essas conversas que tenho com ele do fundo da loucura do meu amor, como se fossem conversas com você. Uma vez que o amor que tenho por ele é real, e já que ele é invisível como você, e já que ele nunca virá e nunca falará comigo, exatamente como você, eu entendo que tanto faz. Você entendeu? E quero que fiquem como se fossem para você também meus looks, enfeites, maquilagens e até meu jeito de falar, já que é tudo para um ser invisível, mas está tudo se perdendo porque ele não vem. Ficou claro?

Entendi Rosalinda, disse. Invisível por invisível, e uma vez que sua vida devocional com Deus é nula, porém você nutre um amor real que está se perdendo, se esvaindo, porque ninguém o recebe, você quer reorientar toda a vida devocional que tem com a pessoa invisível dele, para a pessoa invisível de Deus. O que em sua opinião, dada a sua solidão e ausência de respostas, dá na mesma. Entendi sim. Concordo.

Ainda bem que lá de baixo ela não viu que eu tinha lágrimas nos olhos, mas eu lá de cima pude ver lágrimas nos olhos dela.

Ela apagou o cigarro sob as sandálias cor de rosa, ajeitou o xale lilás, e sem dizer mais nada caminhou na direção do escuro do resto de minha noite, mas quando amanheceu, aconteceu o inacreditável: Eu me vi pensando que existia, e pensando em Rosalinda o tempo todo, e em todas as banalidades do dia, exatamente como ela fazia com ele, e faço isso até hoje, e tanto, que já chego a acreditar que existo, que Rosalinda existe, que estamos juntos e somos felizes como num sonho.

Só não sei mais se sou o narrador oculto ou se sou mesmo Deus. Mas seguindo a lógica de Rosalinda, como ninguém me ouve e ninguém me vê, tanto faz.

Numa tarde dessas, agindo como se existisse, eu fiz café para mim, e me assustei quando servi duas xícaras na mesa vazia. O susto me fez derrubar o açucareiro de porcelana branca, derramando tudo, e nós dois recolhemos o açúcar e os cacos esparramados, dando risadas.

https://www.x.com/lilahbete

LEIA TAMBÉM

LEIA MAIS

+ There are no comments

Add yours